No ano de 2020, dados do Observatório Global do Câncer (GLOBOCAN) da Organização Mundial da Saúde apontaram para o surgimento de 377.713 novos casos de carcinoma de células escamosas de boca (CCEB) em todo o mundo, com 177.757 óbitos. Esse carcinoma representa cerca de 90% de todos os tipos de câncer de boca, sendo a neoplasia maligna mais comum nessa região anatômica. De acordo com os dados colhidos pelo Instituto Nacional do Câncer do Brasil, no mesmo ano, foram estimados 15.190 novos casos de câncer de boca, em todo o país, cujo número de óbitos foi de 6.605. Esse tipo de câncer afeta principalmente adultos, do sexo masculino. O risco de desenvolver a doença aumenta com o avanço da idade. Estudos sugerem crescente incidência dessa neoplasia em jovens, sendo que, em alguns casos, não se encontra associação desta com o consumo de tabaco e álcool.
Etiologia
A causa do CCEB é multifatorial, relacionada com a combinação de fatores ambientais, individuais (hereditariedade, resposta imunológica do paciente) e nutricionais. Dentre os fatores ambientais, o tabaco e o álcool são os maiores responsáveis para o surgimento dessa doença, sendo a exposição à radiação ultravioleta apontada como o motivo primário para a ocorrência do carcinoma de células escamosas do lábio.
O CCEB pode ser precedido por lesões cancerizáveis, das quais se destacam a leucoplasia e a eritroplasia. Vale ressaltar ainda outras lesões cancerizáveis importantes, tais como: a fibrose submucosa, na região do sudoeste asiático, e a queilite actínica – para carcinoma de lábio. Alguns casos de líquen plano também mostram transformação maligna.
Há muitas evidencias de que o consumo do tabaco tem papel importante no desenvolvimento do CCEB. Essa enfermidade tem prevalência em homens, por ser um grupo que consome mais tabaco em forma de fumo. A interrupção desse hábito diminui os riscos de desenvolvimento da doença ou surgimento de novo tumor primário. Além disso, há maior risco para desenvolver a doença entre aqueles que são tabagistas. Merece destaque que o tabaco não mascado, quando fermentado ou associado com outros produtos, como a folha de betel e noz de areca, formando a pasta de betel, apresenta alta ação carcinogênica. Vale ressaltar que, o tabaco mascado não curado, na forma do rapé oral, utilizado nos países escandinavos e parte dos Estados Unidos, tem baixo efeito carcinogênico quando comparado com as demais formas de consumo. Entretanto, é importante mencionar que não existe forma segura para consumi-lo.
O álcool é outro fator etiológico do CCEB relevante. O seu papel está mais relacionado com o carcinoma do que com o desenvolvimento da leucoplasia, lesão cancerizável e prevalente de boca. Estudos epidemiológicos evidenciam que o risco relativo para o desenvolvimento da doença aumenta com a associação do fumo e do álcool.
O vírus HPV é também outro importante agente etiológico do câncer, principalmente para os casos de orofaringe. O carcinoma, nessa região, está associado à infecção por um HPV de alto risco, HPV-16 e HPV-18, que está mais relacionado aos hábitos sexuais, como número de parceiros ou prática de sexo oral. Curiosamente, o prognóstico dos tumores HPV positivos é melhor do que das lesões negativas para o vírus. Uma das possíveis explicações, para isso, seria a ausência do campo de cancerização nos carcinomas associados ao vírus.
Os carcinomas associados ao fumo e álcool, por exemplo, se formam a partir de um campo de cancerização, o que impõe maior risco para o desenvolvimento de um segundo tumor primário ou de campo.
A imunossupressão é também um fator de risco e existem dados que apontam para maior susceptibilidade para a doença nos indivíduos transplantados de órgãos ou HIV-positivos. A participação do microbioma na gênese do CCEB é um campo que está sendo explorado, e se mostra promissor para conhecermos melhor a doença no futuro. É importante lembrar que a microbiota oral interage com os fatores ambientais da doença, podendo aumentar o risco de desencadeamento da doença. O que pode está relacionado à metabolização de nutrientes por estes micro-organismos, gerando produtos com maior efeito carcinogênico. Por fim, a radiação ultravioleta é o principal fator etiológico do carcinoma de células escamosas do lábio.
Características clínicas e radiográficas
Os principais sítios de ocorrência do CCEB são a borda lateral/ventre de língua e o soalho bucal (Figura 1). Em seguida temos a gengiva, mucosa jugal, mucosa labial e o palato duro. Curiosamente, os tumores na gengiva são menos associados ao tabaco, com predileção por mulheres. Durante as fases iniciais, a doença é assintomática, o que atrasa o seu diagnóstico, comprometendo o prognóstico. O CCEB se apresenta como uma massa tumoral exofítica, com superfície ulcerada, papilar ou verruciforme, que pode ter também crescimento endofítico ulcerado, com maior padrão de invasividade (Figuras 2, 3 e 4). Placas leucoplásicas e eritroleucoplásicas são importantes apresentações clínicas da doença, em especial na fase inicial. Nesses casos, a apresentação clínica é similar ao da leucoplasia ou eritroplasia. As bordas do tumor tendem a ser elevadas ou em rolete, o que é causado pela infiltração das margens da lesão por células neoplásicas (Figura 5). Dependendo da localização do tumor, a destruição de osso também pode ocorrer. Nessa situação, a imagem radiográfica será radiolúcida e com limites imprecisos, semelhante a “roído por traças” (Figuras 6 e 7).
Figura 1- Carcinoma de células escamosas de borda lateral de língua.
Figura 2- O carcinoma de células escamosas de boca pode se apresentar clinicamente como uma lesão eritroplásica.
Figura 3- Lesão ulcerada em fase inicial do carcinoma de células escamosas no palato mole.
Figura 4- Nessa imagem o tumor se apresenta como uma lesão tumoral com superfície ulcerada.
Figura 5- Carcinoma de células escamosas de lábio inferior. Notar a presença de lesão ulcerada e com bordas elevadas ou em rolete. Esse achado é devido à característica infiltrativa do tumor.
Figuras 6 e 7- Tumor em estágio avançado com invasão da pela e destruição óssea.
A metástase do CCEB ocorre principalmente por via linfática e acomete, inicialmente, os linfonodos ipsilaterais, que se tornam endurecidos e aumentados quando afetados (Figura 8). Com o passar do tempo, a cápsula do linfonodo por ser destruída pelas células neoplásicas, levando a invasão dos tecidos adjacentes. No exame clínico, isso é notado durante a palpação, quando se tem a impressão de que os linfonodos estão fixos nos tecidos adjacentes. Esse achado, juntamente com a extensão e profundidade do envolvimento linfonodal, estão relacionados ao pior prognóstico. Conforme o tamanho do tumor, extensão do envolvimento dos linfonodos, presença de metástase distante, faz-se o estadiamento da doença. Recentemente, a profundidade da invasão tecidual do carcinoma e o seu envolvimento extranodal, avaliados microscopicamente, foram também incorporados a essa classificação. Com base em todos esses parâmetros, os tumores são estadiados em 4 níveis, alguns com subníveis; enquanto que os mais elevados estão associados ao pior prognóstico.
Figura 8- Linfonodos endurecidos e aumentados em paciente com carcinoma de células escamosas em fase avançada.
Características histopatológicas
O quadro histopatológico clássico do CCEB indica invasão da lâmina própria, ou tecidos mais profundos por cordões ou lençóis de células, exibindo atipia celular (Figura 9). Esse termo inclui alterações morfológicas microscópicas, como células que contêm núcleos hipercromáticos, figuras de mitose atípicas, pleomorfismo celular e nuclear (variação na forma), anisocitose celular e nuclear (variação no tamanho) e relação núcleo/citoplasma aumentado (Figuras 10, 11 e 12). Os cordões, ilhas ou lençóis de células do tumor não apresentam conexão com o revestimento epitelial da mucosa e podem apresentar formação de pérolas de queratina (disqueratose ou queratinização intraepitelial). Tendo em vista que a neoplasia invade os tecidos, pode ocorrer invasão perineural e invasão dos vasos sanguíneos e linfáticos. Em razão da proliferação celular desordenada, áreas de necrose também podem ser observadas.
De acordo com a semelhança que o tumor exibe com o epitélio de revestimento oral, o CCEB pode ser classificado como bem ou mal diferenciado. Se por um lado o aumento do grau de displasia é encontrado nos tumores mais indiferenciados, a produção de queratina é um dado importante a ser considerado para a sua classificação como bem diferenciado. Os tumores mais bem diferenciados, ou seja, aqueles que guardam maior semelhança com revestimento epitelial normal da mucosa, apresentam melhor prognóstico. A pesquisa do vírus HPV por métodos imunohistoquímicos, PCR ou hibridização in situ, é mais utilizada nos tumores de orofaringe porque nesses encontramos maior associação etiológica com esse vírus. Os carcinomas associados com esse vírus são menos queratinizados e exibem aparência citológica mais basaloide.
Figura 9- Quadro microscópico do carcinoma de células escamosas mostrando invasão da lâmina própria por lençóis de células neoplásicas. Observar a presença de disqueratose ou queratinização intraepitelial.
Figura 10- Observar a presença de células epiteliais pleomórficas (seta).
Figura 11- Diversas figuras de mitose são observadas. A seta indica uma célula em metáfase.
Figura 12- Nessa fotomicrografia mostramos diferentes figuras de mitose das epiteliais neoplásicas. Algumas estão na fase de prófase (seta escura) e outra em metáfase (seta branca).
Tratamento
O tratamento do carcinoma é principalmente cirúrgico. A radioterapia, isolada ou combinada com quimioterapia, são utilizados nos casos mais avançados. A remoção parcial ou radical dos linfonodos da região deve ser planejada, conforme o estágio de evolução da doença. De acordo com o estágio da doença, a sobrevida de 5 anos do CCEB pode variar de 20 a 94%. Os tumores em lábio e em estágios iniciais de desenvolvimento apresentam maior sobrevida. De todo modo, um pouco menos de 60% dos pacientes sobrevivem 5 anos. Portanto, para aumentar a sobrevida na doença algumas medidas tem grande impacto, tais como: diagnóstico precoce – o que é um grande desafio para todos os profissionais de saúde; desenvolver políticas públicas de prevenção e controle da doença – tais como: campanhas que combatem o consumo do fumo e álcool – e incentivar a melhoria da qualidade de vida.
Preciso incluir tecido normal na biópsia para o diagnóstico de carcinoma de células escamosas? Para responder a essa pergunta, convido o leitor a ler o post abaixo!
Leitura complementar:
1- Mupparapu M, Shanti RM. Evaluation and staging of oral cancer. Dent Clin North Am 2018;62:47-58.
2- Neville BW, Allen CM, Damm DD, Chi AC. Oral and Maxillofacial Pathology 2016. Elsevevier:St Louis. 4ed.
3- Gomes CC, Diniz MG, Gomez RS. The molecular basis of carcinogenesis. Head and Neck Cancer Clinics. Springer: Singapore. 1ed.
4- Stambuk HE, Karimi S, Lee N, Patel SG. Oral cavity and oropharynx tumors. Radiol Clin North Am 2007;45:1-20.
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